Encerramento do Projeto Agricultura Urbana reúne organizações e participantes em debates sobre direitos

O evento marcou também o IV Encontro de Mulheres da Agricultura Urbana da RMR. A Casa da Mulher do Nordeste (CMN), ao lado do Centro Sabiá e da ONG FASE, foi idealizadora e realizadora do projeto

Por Ana Roberta Amorim, da Casa da Mulher do Nordeste

Foto: Letícia Maria Menezes/Centro Sabiá

O encerramento do Projeto Agricultura Urbana – Produzindo Comida de Verdade e Gerando Qualidade de Vida aconteceu com uma grande culminância entre as participantes do projeto e representantes das organizações responsáveis pela realização do trabalho. O evento, ocorrido no Clube de Formação e Lazer CFL do SINDSPREV,no bairro da Guabiraba, dias 20 e 21 de junho, também marcou o IV Encontro deMulheres da Agricultura Urbana da Região Metropolitana do Recife.

A programação que envolveu a Feira de Saberes, com os produtos das agriculturas, entre alimentos das hortas e quintais, mudas de plantas diversas, fitoterápicos, tapetes de material reciclado, eco bags, roupas, spray aromático, e outros produtos, além de uma apresentação teatral comandada pela dupla As Cumade, trouxe também importantes discussões entre as organizações e as agricultoras. Em seus dois dias, houve rodas de diálogo e conversas sobre incidência política para o entendimento da principal proposta do projeto, que vai além da qualificação e implantação de quintais e hortas urbanas na Região Metropolitana do Recife: tem a ver diretamente com formação da rede de mulheres agricultoras e o fortalecimento delas diante da sociedade patriarcal.

“A agricultura urbana mostrou às muitas mulheres que eram maltratadas pelos maridos e companheiros como é importante viver em comunidade, uma a uma, conversando”, destacou Marleide Monteiro, do Quintal Produtivo Passarinho. Ela ressaltou a importância do projeto na vida de tantas mulheres cujas vozes são silenciadas em relacionamentos, e na sua própria vida, ajudando na recuperação de um grave estado de depressão. “Eu andava chorando, eu não sabia falar, só sabia chorar. Foi aí que eu tirei por mim como é importante a agricultura, como é importante ter um projeto de vida. Foi quando eu renasci. Estou aqui para aprender a botar a mão na terra. A pandemia fez as mulheres ficarem mais presas aos seus companheiros, a não ter voz ativa de botar para fora. Mas no grupo da agricultura com os quintais produtivos de Passarinho, com a minha coordenadora, professora Jack, fui aceita de braços abertos”, afirma.

Dianira de Lima Oliveira evidencia o fato de o projeto tê-la acolhido mesmo sem experiência prévia na prática da agricultura urbana. “A situação que a gente encontrou o terreno foi complicada. Era um terreno baldio, muito lixo. Precisamos ter uma pessoa para nos orientar, que foi a nossa coordenadora Simone que passou muito conhecimento para a equipe. Aprendi muita coisa, como a importância da alimentação orgânica, o adubo, como preparar a terra, a compostagem, como aguar, como plantar, colher, podar”, relembra a agricultora da Vila Independência, no bairro de Nova Descoberta.

Para Thamires dos Santos Vieira, membra da Ocupação 8 de março, o Projeto Agricultura Urbana vem para somar ao que ela e os seus companheiros conhecem bem: resistência em meio a tantas adversidades. “Estamos no metro quadrado mais caro de Boa Viagem. A gente resistiu lutando por moradia e quando surgiu a horta, a gente não sabia e não tinha nem tanto um olhar de como fazer uma horta naquele espaço. Mas a gente era um povo que não tinha medo de lutar. Começamos com uma horta pequena, e, quando veio o projeto, foi algo surreal”, enfatiza.

Grávida do nono filho, a agricultora urbana salienta também o impacto da proposta na alimentação das crianças, que mudou a partir das orientações recebidas durante um ano de conversas e intercâmbios. “Ensinar às nossas crianças a tomar chá, trocar o refrigerante pelo suco, pegar a nossa própria horta e fazer uma farmácia viva, o que a gente não encontra no posto de saúde a gente encontra na nossa ocupação. Mas para isso precisamos fazer a nossa revolução”, acentua.

Foto: Ana Roberta Amorim/CMN

Feminismo, antirracismo e agroecologia

Durante os dois dias de evento, participaram representantes de mais de dez organizações, como o Grupo Espaço Mulher, CEFOMP, Núcleo Jurema da Universidade Federal Rural de Pernambuco, Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto,  Fórum de Mulheres de Pernambuco, Marcha Mundial das Mulheres, Articulação de Agroecologia Agricultura Urbana e Periurbana da Região Metropolitana do Recife, FETAPE, Coletivo de Mulheres Periféricas e LGBTQIA+ e Hortas do Bem Comum, Centro Nordestino de Medicina Popular, Quilombo Semear, Coletivo Jardins dos Saberes, Cozinha Solidária e Amigos da Sopa.

A Casa da Mulher do Nordeste (CMN), ao lado do Centro Sabiá e da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), responsáveis pela elaboração e execução do projeto também estiveram presentes.

Aniérica Almeida, coordenadora técnica pedagógica do Centro Sabiá, explicou como o fato de o projeto ter sido escolhido pela sociedade civil, a partir do lançamento da emenda parlamentar que disponibilizou recursos para ser posto em prática, evidencia a importância e o impacto do trabalho realizado.

“Não foi por troca de voto, para beneficiar político A ou B. Emenda parlamentar é um recurso público. Então, esse processo [de tramitação à aprovação], até chegar aqui nos dá muito aprendizado. Hoje, sabemos como acessar as emendas parlamentares”, assinala.

A representante do Sabiá também frisa a atuação da ONG na defesa da agroecologia a partir de três aspectos: prática, ciência e movimento. “Quando a gente olha para a agroecologia enquanto uma prática, estamos reconhecendo que ela já era exercida pelos povos originários, pelos pescadores artesanais, pelas religiões afroindígenas e africanas, muito antes de nós. Ela também é uma ciência, mas não convencional, pois ciência não é só feita por quem está na academia ou nos laboratórios, mas com o povo, que precisa ser reconhecido e valorizado”, evidencia.

Foto: Ana Roberta Amorim/CMN

Graciete Santos, presidenta da Casa da Mulher do Nordeste, faz uma relação direta entre a prática agroecológica e o feminismo. Como ela afirma, a frase “Sem Feminismo Não Há Agroecologia” não é por acaso. “Defendemos esse conceito porque os três sistemas [patriarcado, racismo e capitalismo] estão completamente articulados na nossa cultura. Fala sobre o homem que não planta com agrotóxicos, consume o que produz etc, mas oprime a companheira, não dá espaço para que ela participe da vida política, dos intercâmbios, não respeita os desejos e as vontades da companheira, não divide o trabalho em casa”, diz.

Por isso, como destaca a presidenta, feminismo e agroecologia precisam andar lado a lado, seja no campo ou na cidade. “Uma luta fundamental é que a gente precisa compreender que essa divisão [de gênero] não existe e a gente precisa desconstruir. E para fazermos isso precisamos entender que é injusto, desigual e que nós temos o direito de transformar essas relações, na casa, na cama, no quintal e em todos os lugares. A experiência da agricultura urbana é revolucionária porque transforma o cotidiano”, declara.

Já Rosemere Nere, educadora da FASE, destaca a forma como o racismo ambiental – conceito que explica como eventos climáticos, de moradia e mobilidade afeta mais as pessoas negras – acontece na RMR e como a prática da agricultura urbana vai contra isso. “Pensar a cidade não é só pensar a questão da mobilidade, da moradia ou do saneamento e água, mas pensar de uma forma mais ampla, mais alargada”, explica, acrescentando que não há como discutir práticas agroecológicas, resíduos sólidos e mesmo a organização de mulheres sem pensar no básico, que é a produção e o acesso à comida.

Ela explica que a própria organização do Recife se deu a partir da lógica racista. “No século 18, espaços onde hoje conhecemos como Graças e Espinheiro eram ocupados por nós, pretos. Como a gente foi expulso daquela área para Nova Descoberta, Alto do Mandu, Alto de Santa Isabel? Justamente por isso, para deixar a sociedade branca e limpa, porque ser negro era sinal de sujeira. O processo de higienização começa no século 19 e continua até hoje”, pontua.

Foto: Letícia Maria Menezes/Centro Sabiá

Projeto Agricultura Urbana

Com o nome “Produzindo Comida de Verdade e Gerando Qualidade de Vida”, o Projeto de Agricultura Urbana foi realizado pela Casa da Mulher do Nordeste, a ONG FASE e o Centro Sabiá a partir da emenda parlamentar nº41750013, com apoio da Misereor.

Durante um ano de execução, a iniciativa atendeu 15 comunidades e territórios da Região Metropolitana do Recife. No total, foram 12 hortas e 47 quintais e becos produtivos trabalhados.

Em relação ao público, o projeto contou com a participação de 236 pessoas, sendo a maioria de mulheres, 83,05% (uma delas se identificou como mulher trans). Pardos e pretos também formaram a maior parte das agricultoras e agricultores urbanos, com 80% negros e negras no total (189 pessoas).

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